Houve um tempo em que eu escrevia. Sentava na varanda das casas, na
areia das praias, nas pedras, nas calçadas e nos bancos das praças, sentava e
escrevia. Escrevia o mundo a minha volta e o mundo dentro de mim. Escrevia as
pessoas e me descrevia nelas. Naquele tempo, eu escrevia.
Houve tempos, dentro desse tempo distante, em que somente escrever não
me era suficiente, então eu escrevia sobre o amor. Porque o amor é delicado e
intenso, e o que se escreve dele é mais do que se pode escrever sobre qualquer
outra coisa. Eu escrevia sobre amores de outros, amores que queria que fossem
meus, amores meio meus e amores que nunca seriam de ninguém. Escrevia sobre o
amor que eu tinha e sobre o que eu não tinha porque para o poeta só o que
importa é escrever. Escrevia porque alguma coisa em mim não queria ficar em
mim. Alguma coisa se contorcia dentro do meu corpo e cultivava minha mente com
frases dispersas que de um jeito ou de outro não deveriam estar ali. Então eu
escrevia. Encarava folhas de papel e telas vazias, sentia o parar do tempo e o
silencio do ar. Mergulhava fundo nas palavras e soltava meus monstros transfigurados
em frases muitas vezes floridas com esse amor que eu tinha, mas não podia ficar
em mim porque nunca era totalmente meu.
O tempo veio e revirou meus dias, minhas memórias, minha mente e minha
vida e depois foi embora sem me deixar nem se quer um minuto livre, quiçá uma
hora ou um dia. Juntei os rastros que o tempo deixara em sua passagem por mim na
esperança de ter um tempo que pudesse ser meu, que pudesse ser meu para deixar
que em palavras os céus se abrissem. Mas nesse tempo eu dormi, dormi porque o
cansaço da vida me tomou o pensamento. Me tomou monstros, palavras, versos e o
meu pensamento se tornou cansado, já não queria atravessar longos caminhos pelo
meu sono conturbado ou pelo meu dia atarefado. O meu pensamento adormeceu e eu
esqueci de escrever. Minha necessidade gritante de juntar palavras e palavras
cessou e minha vida virou o meu conto. Não foi de todo ruim nem de todo bom. Eu
vivia o bom e o ruim do escrever. O escrito agora era dito e feito dia-a-dia. Era
vivido. Era vívido.
Mas hoje, em especial, eu quis voltar. Eu quis voltar porque alguma
coisa dentro de mim gritou e de alguma forma tentou sair. Não quis sair de todo
nem quis mostrar muito a cara ou corpo, mas queria mandar um “alô”, e eu achei
que fazia certo deixar. Deixar levantar a mão e acenar para os de fora. Acenar
alguma coisa sobre o amor. Mas não um amor que urra pra se desvencilhar de mim,
um amor que só preenche páginas e páginas e depois se vai. Esse amor, esse amor
é meu. E talvez por isso seja tão difícil escrever sobre ele. Esse amor não
quer sair. Esse amor quer ficar.
Esse amor, ele não quer ser escrito, descrito, entendido e subentendido
pra depois morrer em mim. Esse amor, ele quer viver. Em algum lugar aqui ele
quer ficar e quer ficar por um bom tempo. Hoje ele quis se mostrar, só quis
acenar e esguichar um pouco da felicidade que tem. Felicidade essa que é
plenamente minha. Porque o poeta esconde o que é dele. E mesmo o que quer dizer, não quer dizer ele
mesmo. O poeta quer que as pessoas saibam sem que se diga muito. O poeta
inventa rimas e frases desconexas, separa tudo em versos e estrofes para, a uma
primeira vista, não dizer nada de verdade. Ali no meio, porém, no rearranjo das
estrofes, no recitar dos versos, ali está o que o poeta diz. E não importa a
ele quem consegue ler, importa é que está escrito. Está dito. Saiu. Sumiu de
mim.
Eu, como poeta adormecida que sou, jamais vou deixar que o verso que é
puro sentimento tome esse amor de mim. E aqui, no que eu digo, eu digo pouco.
Porque eu não quero dividir esse amor. Eu não quero. Não quero que suma de mim
pelas palavras. Não quero que seja explicado nem que por outros seja sentido,
mesmo que seja demais pra mim. Mesmo demais ele é meu. E tudo que eu posso dar
em palavras não passa de um filete, um raio fino, uma gota, um resquício, uma
fuligem de amor. Não me importa que seja demais pra mim. Porque é meu. E por
ser meu eu quero que me inunde.
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