Eu estava
meio nervosa. Era uma salinha escura. A única luz que a iluminava vinha de um lustre
empoeirado, com aquelas lâmpadas que imitam as chamas de velas. As lâmpadas
piscavam como naquelas casas antigas em que os aparelhos eletrônicos novos
sobrecarregam a instalação elétrica ultrapassada. Um clima sombrio, não assustador,
mas desconfortável, como se alguém estivesse à espreita. No canto havia um
sofá, um pouco velho, uma mesinha de madeira escura avermelhada com alguns
livros empilhados, um copo de água e um porta-retratos com um espelho no lugar
em que costumam colocar as fotos. O assoalho, também de madeira, tinha sua
maior parte coberta por um tapete manchado e revirado nas pontas. Parecia muito
com uma sala de espera de um antigo consultório dentário. Eu nunca gostei muito
de dentistas, na verdade fugia deles. Sempre muito limpos e sorridentes, me
parecia sempre algo muito artificial, como uma cena cujo texto era repleto de
palavras tranquilizadoras. É claro que ir ao dentista não era nenhuma sessão de
tortura, , o que fazia a situação ainda mais desagradável, quase irritante. Por
que tanto esforço para tornar tranquilizante e natural um ato tão trivial como
uma simples consulta ao dentista?
Eu refleti
enquanto observava o pequeno cômodo procurando adaptar minhas pupilas a pouca
luz. Sentei no sofá e suspirei. Encarei a parede esperando por um chamado que não
aconteceria. Afinal ninguém iria abrir uma porta e dizer “Senhorita, você já
pode entrar, o Doutor está esperando” porque eu não estava em uma sala de
espera. Onde eu estava afinal? Eu estava em algum lugar, entre quatro paredes
escuras e duas misteriosas portas, e sim, eu estava extremamente
desconfortável. Olhei ao meu lado e notei a pilha de livros. Alguns eram literaturas
clássicas, havia uma coletânea de fábulas antigas também, um livreto de
poesias, e um grosso caderno de anotações, todos com a capa um pouco suja e furada
pelas traças.
Folheei o caderno
me desvencilhando da poeira que, agora notava, tomava toda a sala, e percebi
que cada página continha uma anotação diferente. A caligrafia era diferente, os
escritos eram diferentes. Algumas eram apenas tópicos aleatórios como “Não se
esqueça de sorrir sempre”, “Qualquer escolha será bem vinda” e “Estamos com
você nessa também”. Outras eram algo
como cartas direcionadas de desculpas, de despedidas e algumas até de amor. Umas
poucas estavam em branco, outras estavam riscadas somente, e outras ainda eram
completamente cobertas com ilustrações de todo tipo. Era um caderninho muito
bonito. Eu o fechei e segurei firme em minhas mãos, percebi que tinha começado
a folhear do fim e que na capa estava escritos: Todos Devem Dar Sua
Contribuição. Se não tens nada a contribuir, deixe ao próximo a reflexão de uma
página em branco. A segunda frase estava escrita em letras menores, abaixo do
que seria o título.
Talvez
minha contribuição seja mais uma página em branco então. Eu não fazia a mínima
ideia do que escrever. Na verdade eu ainda estava esperando que alguém me
chamasse na pequena sala de espera, alguém saísse sorridente da uma das portas
e dissesse: É sua vez agora. Eu estava um pouco disposta a arcar com as
consequências de o sorriso ser uma encenação como nas salas de dentistas, mesmo
que o que estivesse atrás da porta fosse algo realmente ruim. Eu sentia que
qualquer coisa seria melhor do que tomar a decisão de abrir qualquer uma das
portas, até porque sentia que isso era exatamente o que eu devia fazer. Estava
me sentindo pressionada pelas hipóteses, como sempre. As hipóteses das
consequências de uma decisão ruim.
Eu comecei
a me encolher no sofá tentando me acomodar, ainda segurando o caderno, como uma
criança assustada. Nenhuma posição parecia confortável. A lâmpada continuava
piscando, irritando a minha mente um pouco desnorteada e bagunçando o meu
reflexo espantado no porta-retratos: os olhos arregalados, o rosto rígido.
Tentei ler algumas cartas do caderno, o lugar, porém, era muito escuro, e a
tarefa de entender as letras desconhecidas só deixava a situação ainda mais
inquietante. Abri uma página em branco e a encarei, procurando a reflexão.
Depois de
um tempo encolhida no sofá em posição fetal, encarando a página que após tanto
tempo já havia tomado várias cores diferentes, meu corpo começou a doer e eu
senti necessidade de deitar e descansar. Abracei o caderno e deitei no tapete.
Precisei me encolher um pouco para caber no espaço pequeno do chão da sala. Ainda
assim era mais aconchegante que o sofá. Fechei os olhos. Aos poucos a minha
respiração foi se acalmando, os músculos relaxaram e, esquecendo onde estava,
eu adormeci.
Foi um
sono sem sonhos ou pesadelos, perfeito para a situação em que eu estava. Não
sei quando tempo se passou até abrir os olhos, mas ainda posso me lembrar da
sensação de olhar para a o lustre balançando com suas lâmpadas a piscar. Eu me
enrijeci e fechei os olhos, como se tivesse levado um choque. Amaldiçoei todos
que pude e quando abri os olhos novamente nada havia mudado. Eu fiquei ali
encarando o lustre, acompanhando os caminhos das lâmpadas, contando aquelas que
já haviam se apagado. Fiquei ali por um longo tempo. O bastante para notar um contorno retangular que revelava um tipo de
entrada para o sótão. Eu não poderia descrever o que passou por mim naquele
momento, mas de alguma forma eu me senti melhor.
Havia duas
portas e eu não poderia escolher nenhuma delas sem ter uma vida inteira
assombrada pela não escolha da outra. Eu sofri por isso e encontrei outra porta
que estava aparentemente escondida. Talvez seja isso que eles costumam chamar
de esperança. Eu não estava feliz, tinha certeza que os caminhos das portas
misteriosas ainda me assombrariam, mas aquilo parecia simplesmente um chamado.
Estava muito alto, porém. Eu não sabia se conseguiria alcançar. Eu subi em cima
do sofá tentando alcançar o puxador, ainda assim não parecia próximo. Comecei a
ficar um pouco desesperada, com medo de que eu não pudesse seguir o caminho do
sótão. Arrastei o sofá mais para o canto, exatamente embaixo da porta oculta.
Retirei as coisas de cima da mesa de canto, minhas mãos tremiam e eu derrubei
parte da água que havia no copo no chão, molhando os livros. Coloquei a mesinha
de canto sobre o sofá tentando achar algum modo seguro da engenhoca me
sustentar. Subi no braço do sofá e então na mesinha, me equilibrando nas
paredes. Minha cabeça tocou no teto e a altura parecia perfeita para subir no patamar
acima. Eu estava tão aliviada que lágrimas corriam de meus olhos. Empurrei a
porta para cima e, imediatamente fui cegada por uma luz muito forte que jorrava
do cômodo acima.
A luz iluminava
toda a salinha evidenciando ainda mais quão sombrio era o local. A luz me desnorteou e eu soltei a porta rápido,
perdendo o equilíbrio. Voltei para o chão um pouco absorta, tentando não ficar
tonta. Olhei para o assoalho e vi o caderno de anotações. Eu estava me preparando
para enfrentar a luz, decidida a seguir o caminho do teto. Sorri com a ideia de
contribuir para o caderno. Procurei o lápis que estava sobre a mesa no chão e escrevi
no meio da página destinada à minha contribuição: “Quando não se consegue escolher alguma coisa, alguma coisa escolherá você”. Pareceu mais uma daquelas frases já escritas quando terminei de escrevê-la, mas não importou pois fazia sentido pra mim.
Escalei o
sofá velho, e então a mesinha, fechei os olhos e empurrei a porta. Subi para o
patamar superior. Deitei no chão do sótão, estranhei, parecia grama. Tateei ao
lado e senti apenas mais grama. A luz intensa atravessava as pálpebras formando
espectros iluminados na parte interna dos meus olhos. Eu me levantei e os abri.
Estava em um imenso campo de flores, de todas as cores e tipos. O sol estava
forte mas já se punha no horizonte, pintando o céu de várias core. Um vento
leve balançava as flores e os meus cabelos. Era tão bonito que naquele momento
eu pude esquecer qualquer caminho que qualquer porta pudesse ter me levado. Eu
ria freneticamente, como nunca antes. Ao longe escutei uma voz a chamar meu
nome.
“Onde você
estava todo esse tempo? Estávamos todos te procurando.” disse a voz. Eu observei intrigada, não sabia quem era aquela pessoa a me olhar. “Pare de me olhar
com essa cara e venha logo. Agora que já assustou a todos, pode voltar. Até
porque, já é hora do chá. Fizeram aqueles bolinhos que você gosta.” Eu consenti
com um sorriso e a voz me puxou pelo braço. Enquanto caminhava olhei para trás procurando
algo, mas não lembrava o que. Também não me importava. Continuei observando o
pôr do sol enquanto era guiada pela minha voz amiga até o lugar onde todos me
esperavam. Talvez seja isso que eles costumam chamar felicidade então.