segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Talvez Seja Isso Que Eles Chamam Viver

Eu estava meio nervosa. Era uma salinha escura. A única luz que a iluminava vinha de um lustre empoeirado, com aquelas lâmpadas que imitam as chamas de velas. As lâmpadas piscavam como naquelas casas antigas em que os aparelhos eletrônicos novos sobrecarregam a instalação elétrica ultrapassada. Um clima sombrio, não assustador, mas desconfortável, como se alguém estivesse à espreita. No canto havia um sofá, um pouco velho, uma mesinha de madeira escura avermelhada com alguns livros empilhados, um copo de água e um porta-retratos com um espelho no lugar em que costumam colocar as fotos. O assoalho, também de madeira, tinha sua maior parte coberta por um tapete manchado e revirado nas pontas. Parecia muito com uma sala de espera de um antigo consultório dentário. Eu nunca gostei muito de dentistas, na verdade fugia deles. Sempre muito limpos e sorridentes, me parecia sempre algo muito artificial, como uma cena cujo texto era repleto de palavras tranquilizadoras. É claro que ir ao dentista não era nenhuma sessão de tortura, , o que fazia a situação ainda mais desagradável, quase irritante. Por que tanto esforço para tornar tranquilizante e natural um ato tão trivial como uma simples consulta ao dentista?
Eu refleti enquanto observava o pequeno cômodo procurando adaptar minhas pupilas a pouca luz. Sentei no sofá e suspirei. Encarei a parede esperando por um chamado que não aconteceria. Afinal ninguém iria abrir uma porta e dizer “Senhorita, você já pode entrar, o Doutor está esperando” porque eu não estava em uma sala de espera. Onde eu estava afinal? Eu estava em algum lugar, entre quatro paredes escuras e duas misteriosas portas, e sim, eu estava extremamente desconfortável. Olhei ao meu lado e notei a pilha de livros. Alguns eram literaturas clássicas, havia uma coletânea de fábulas antigas também, um livreto de poesias, e um grosso caderno de anotações, todos com a capa um pouco suja e furada pelas traças.
Folheei o caderno me desvencilhando da poeira que, agora notava, tomava toda a sala, e percebi que cada página continha uma anotação diferente. A caligrafia era diferente, os escritos eram diferentes. Algumas eram apenas tópicos aleatórios como “Não se esqueça de sorrir sempre”, “Qualquer escolha será bem vinda” e “Estamos com você nessa  também”. Outras eram algo como cartas direcionadas de desculpas, de despedidas e algumas até de amor. Umas poucas estavam em branco, outras estavam riscadas somente, e outras ainda eram completamente cobertas com ilustrações de todo tipo. Era um caderninho muito bonito. Eu o fechei e segurei firme em minhas mãos, percebi que tinha começado a folhear do fim e que na capa estava escritos: Todos Devem Dar Sua Contribuição. Se não tens nada a contribuir, deixe ao próximo a reflexão de uma página em branco. A segunda frase estava escrita em letras menores, abaixo do que seria o título.
Talvez minha contribuição seja mais uma página em branco então. Eu não fazia a mínima ideia do que escrever. Na verdade eu ainda estava esperando que alguém me chamasse na pequena sala de espera, alguém saísse sorridente da uma das portas e dissesse: É sua vez agora. Eu estava um pouco disposta a arcar com as consequências de o sorriso ser uma encenação como nas salas de dentistas, mesmo que o que estivesse atrás da porta fosse algo realmente ruim. Eu sentia que qualquer coisa seria melhor do que tomar a decisão de abrir qualquer uma das portas, até porque sentia que isso era exatamente o que eu devia fazer. Estava me sentindo pressionada pelas hipóteses, como sempre. As hipóteses das consequências de uma decisão ruim.
Eu comecei a me encolher no sofá tentando me acomodar, ainda segurando o caderno, como uma criança assustada. Nenhuma posição parecia confortável. A lâmpada continuava piscando, irritando a minha mente um pouco desnorteada e bagunçando o meu reflexo espantado no porta-retratos: os olhos arregalados, o rosto rígido. Tentei ler algumas cartas do caderno, o lugar, porém, era muito escuro, e a tarefa de entender as letras desconhecidas só deixava a situação ainda mais inquietante. Abri uma página em branco e a encarei, procurando a reflexão.
Depois de um tempo encolhida no sofá em posição fetal, encarando a página que após tanto tempo já havia tomado várias cores diferentes, meu corpo começou a doer e eu senti necessidade de deitar e descansar. Abracei o caderno e deitei no tapete. Precisei me encolher um pouco para caber no espaço pequeno do chão da sala. Ainda assim era mais aconchegante que o sofá. Fechei os olhos. Aos poucos a minha respiração foi se acalmando, os músculos relaxaram e, esquecendo onde estava, eu adormeci.
Foi um sono sem sonhos ou pesadelos, perfeito para a situação em que eu estava. Não sei quando tempo se passou até abrir os olhos, mas ainda posso me lembrar da sensação de olhar para a o lustre balançando com suas lâmpadas a piscar. Eu me enrijeci e fechei os olhos, como se tivesse levado um choque. Amaldiçoei todos que pude e quando abri os olhos novamente nada havia mudado. Eu fiquei ali encarando o lustre, acompanhando os caminhos das lâmpadas, contando aquelas que já haviam se apagado. Fiquei ali por um longo tempo. O bastante para notar  um contorno retangular que revelava um tipo de entrada para o sótão. Eu não poderia descrever o que passou por mim naquele momento, mas de alguma forma eu me senti melhor.
Havia duas portas e eu não poderia escolher nenhuma delas sem ter uma vida inteira assombrada pela não escolha da outra. Eu sofri por isso e encontrei outra porta que estava aparentemente escondida. Talvez seja isso que eles costumam chamar de esperança. Eu não estava feliz, tinha certeza que os caminhos das portas misteriosas ainda me assombrariam, mas aquilo parecia simplesmente um chamado. Estava muito alto, porém. Eu não sabia se conseguiria alcançar. Eu subi em cima do sofá tentando alcançar o puxador, ainda assim não parecia próximo. Comecei a ficar um pouco desesperada, com medo de que eu não pudesse seguir o caminho do sótão. Arrastei o sofá mais para o canto, exatamente embaixo da porta oculta. Retirei as coisas de cima da mesa de canto, minhas mãos tremiam e eu derrubei parte da água que havia no copo no chão, molhando os livros. Coloquei a mesinha de canto sobre o sofá tentando achar algum modo seguro da engenhoca me sustentar. Subi no braço do sofá e então na mesinha, me equilibrando nas paredes. Minha cabeça tocou no teto e a altura parecia perfeita para subir no patamar acima. Eu estava tão aliviada que lágrimas corriam de meus olhos. Empurrei a porta para cima e, imediatamente fui cegada por uma luz muito forte que jorrava do cômodo acima.
A luz iluminava toda a salinha evidenciando ainda mais quão sombrio era o local.  A luz me desnorteou e eu soltei a porta rápido, perdendo o equilíbrio. Voltei para o chão um pouco absorta, tentando não ficar tonta. Olhei para o assoalho e vi o caderno de anotações. Eu estava me preparando para enfrentar a luz, decidida a seguir o caminho do teto. Sorri com a ideia de contribuir para o caderno. Procurei o lápis que estava sobre a mesa no chão e escrevi no meio da página destinada à minha contribuição: “Quando não se consegue escolher alguma coisa, alguma coisa escolherá você”. Pareceu mais uma daquelas frases já escritas quando terminei de escrevê-la, mas não importou pois fazia sentido pra mim.
Escalei o sofá velho, e então a mesinha, fechei os olhos e empurrei a porta. Subi para o patamar superior. Deitei no chão do sótão, estranhei, parecia grama. Tateei ao lado e senti apenas mais grama. A luz intensa atravessava as pálpebras formando espectros iluminados na parte interna dos meus olhos. Eu me levantei e os abri. Estava em um imenso campo de flores, de todas as cores e tipos. O sol estava forte mas já se punha no horizonte, pintando o céu de várias core. Um vento leve balançava as flores e os meus cabelos. Era tão bonito que naquele momento eu pude esquecer qualquer caminho que qualquer porta pudesse ter me levado. Eu ria freneticamente, como nunca antes. Ao longe escutei uma voz a chamar meu nome.
“Onde você estava todo esse tempo? Estávamos todos te procurando.” disse a voz. Eu observei intrigada, não sabia quem era aquela pessoa a me olhar. “Pare de me olhar com essa cara e venha logo. Agora que já assustou a todos, pode voltar. Até porque, já é hora do chá. Fizeram aqueles bolinhos que você gosta.” Eu consenti com um sorriso e a voz me puxou pelo braço. Enquanto caminhava olhei para trás procurando algo, mas não lembrava o que. Também não me importava. Continuei observando o pôr do sol enquanto era guiada pela minha voz amiga até o lugar onde todos me esperavam. Talvez seja isso que eles costumam chamar felicidade então.