Eu dormi
por muito tempo. Um longo tempo e sem saber. Sem saber se era um sonho, um sono
conturbado ou uma vida. Eu sonhei com flores e pássaros, com o amanhecer e o
anoitecer. Sonhei com sorrisos e risadas, vozes doces e melodias de ninar. Mais
tarde, quando já acordada, me disseram que eu sorria enquanto dormia e era
bonito. Disseram que meu rosto se iluminava como nada mais costumava se
iluminar e que, quando acontecia, a única tristeza do momento, era não poder
ver meus olhos brilharem também. Foi ele quem disse tudo isso. Um pouco depois
de colocar suas mãos, frias demais, em meu rosto. Um pouco depois de falar com
aquela sua voz, ainda sem vida. Um pouco depois de eu abrir os olhos. Um pouco
depois de me contar como tudo havia acabado.
- O que
aconteceu?
- Você
descansou. Por alguns anos.
- E o que
eu perdi?
- Você
perdeu tudo.
- Como assim...
Tudo? Eu não posso ter perdido tudo... Posso? – Eu disse, já com lágrimas nos
olhos.
- Não
chore. Talvez tenha sido melhor. Tudo se perdeu por si só. Seu coração não
aguentaria assistir ao modo como as coisas todas se esvaíram, muito menos sua alma.
Você nunca conseguiria sobreviver ao choque do mundo escorrendo de suas mãos,
essas mãos humanas e controversas.
- Meu
coração, onde está?
- Está no
vidro. Está aqui.
Ele tirou
um cubo vítreo de dentro do compartimento interno de seu corpo de metal. Dentro
havia um coração. O meu coração. Pulsava e pulsava, forte e vívido enquanto eu,
contraditoriamente, me sentia fraca. Nada parecia fazer sentido. Eu olhei para
os lados, confusa, pisquei os olhos e reparei na sala branca, vazia, exceto
pelas flores. Havia muitas delas, com várias cores e aromas. Eu sempre gostei de flores. Flores da Terra. Respirei
fundo, bem fundo, fechei os olhos mais uma vez e senti a beleza dos meus
sonhos.
- Eu sei
que você está confusa, mas não há nada a ser feito. Abra os olhos, por favor,
eu estou há tempo demais sem vê-los.
Ele
colocou o meu coração sobre o criado mudo, em meio a algumas flores, e segurou
a minha mão. Eu estava relembrando os campos de girassóis pelos quais havia
corrido em meus sonhos. Eu estava sorrindo para os sorrisos que estavam lá, nos
sonhos, quando notei que não os veria mais, nunca mais. As lágrimas se
multiplicaram e, com o abrir dos olhos, escorreram suaves pelo meu rosto pálido
e quieto.
- Não
chore, por favor. Eu ainda estou aqui e trouxe flores, você sempre gostou de
flores. Talvez seja pouco mas é tudo que temos: um ao outro.
- Como eu
posso não chorar se todos os outros se foram? Eu não pude fazer nada. Estava
dormindo e não lembro nem o porquê. A última coisa que me lembro é de trocar
meu coração pelo... Isso é tudo culpa minha, não é? Todos morreram porque eu não
pude aguentar a vida na Terra... Foi tudo culpa minha! – E então eu chorei.
Chorei todas as lágrimas que se abrigaram em mim nos últimos anos, todas as
tristezas que evitei enquanto não vivi. Ele ficou ali. Deixou-me chorar e me
sentir viva. Há quanto tempo isso não acontecia?
- Nada é
culpa sua. Nada. Eles estragaram tudo, sempre estragam tudo. Todos eles. Você
trocou seu coração pelo simples abrir dos olhos de todos eles e eles jogaram
fora. Esse lugar nunca foi para você. Essa tarefa nunca foi sua. É por isso que
estou aqui lembra? Para cuidar de você porque não sou...
- Porque
você não é como eles. Porque você é de metal. Porque você não tem coração.
- Na
verdade, eu um tenho agora. Eu tenho o seu. Todo esse tempo em que você dormia
eu podia sentir o pulsar do seu coração humano, já que você não precisa mais
dele. Eu podia sentir. Foi importante
esse tempo todo. Eu nunca soube quando você acordaria e um coração a pulsar
sempre nos dá esperanças. Acredito que isso ajudou as flores a se colorirem com
mais vigor também.
- São
lindas. Fazem parte das coisas bonitas que crescem aqui. Então eles se foram?
Todos. Até os que eu amava?
- Você
amou gente demais. Eles nunca mereceram. Você sempre soube. Agora ninguém mais
poderá estragar as flores ou o céu e todas as pequenas coisas de que você
gosta. O mundo continua todo ali fora e ninguém mais pode estragá-lo. Ele é seu
de verdade agora. Venha ver.
- Eu posso
ver?
- Claro!
Você estava apenas dormindo. É preciso descansar depois de se desligar de uma
vida dessa forma. Várias vidas, no seu caso. Venha.
- Mas eu
não preciso do meu coração?
- Você tem
uma alma. Foi sempre tudo que precisou. Eu vou guardar seu coração aqui comigo.
É quente e cheio de bons sentimentos, tudo que eu sempre precisei.
Eu me
levantei da cama e senti aquele vazio de quando não se tem um coração. Eu já
havia sentido isso algumas vezes, quando o coração ainda estava comigo. Todas
aquelas vezes em que os dias se arrastam e as pessoas passam pela sua vida como
sombras e vultos. Havia um sol brilhando na janela e iluminando toda a sala
branca. O sol refletia no homem de metal, que me ajudava a ficar de pé, aquele
que eu havia criado para que pudesse cuidar de mim, já que eu estava sempre
cuidando dos outros.
Agora,
porém, não havia outros. E tudo que podia ser feito estava feito. Não havia
culpa sobre os ombros, obrigações ou cobranças. Eu sorri e levantei minha
cabeça. A minha alma inundou meu corpo, um pouco dolorido, um pouco mole. Só
mais um corpo humano, demasiado fraco. Encostei meu rosto no metal gelado e
senti o calor do coração pulsante enquanto o homem me carregava no colo através
do quarto por entre as flores. O planeta continuava igual e estava lindo. O céu
estava azul e a grama verde.
- Continua
lindo. O que houve com eles, eu digo, o que realmente os fez sumir?
-
Implodiram. Não suportaram a dor de descobrir o mal que haviam feito a todos ao
seu redor e a si mesmos. Quando você os abriu os olhos, eles não aguentaram a
podridão da vida, do mesmo jeito que você.
- Uma
última pergunta: eu não desisti dessa vida quando troquei meu coração pelo “abrir
dos olhos”?
- Sim. Mas
eu tomei a liberdade de fazer alguns ajustes no seu corpo. Achei que não se
importaria já que fui criado para cuidar de você. Sendo assim, eu só estava
fazendo meu trabalho.
- Você faz
muito bem seu trabalho e eu fiz muito bem o meu. Me parece que os papéis se inverteram agora. Acho
que você é o dono do coração pulsante e
eu apenas restos de algo que você fez viver. Não é irônico?
- Não
acredito que seja ironia. Acredito que seja apenas a vida mostrando como ela
sempre quis que as coisas fossem. Coisas grandes e boas levam a coisas maiores
e melhores. Não vejo como poderia ser diferente.
- Acho que
eu poderia viver assim.
Foi o que eu disse, quando o
sol já se punha. Eu disse isso e notei onde estava e como estava, era real e
então eu sorri. Sorri daquele jeito que as pessoas costumavam sorrir enquanto fingiam
viver quando apenas sobreviviam. Daquele jeito como quando no meio do fingimento,
viam vida de verdade e se surpreendiam. Bem daquele jeito, eu sorri. E não
havia, absolutamente, nenhuma surpresa no ato.