domingo, 22 de julho de 2012

Uma Alma e Um Coração

Eu dormi por muito tempo. Um longo tempo e sem saber. Sem saber se era um sonho, um sono conturbado ou uma vida. Eu sonhei com flores e pássaros, com o amanhecer e o anoitecer. Sonhei com sorrisos e risadas, vozes doces e melodias de ninar. Mais tarde, quando já acordada, me disseram que eu sorria enquanto dormia e era bonito. Disseram que meu rosto se iluminava como nada mais costumava se iluminar e que, quando acontecia, a única tristeza do momento, era não poder ver meus olhos brilharem também. Foi ele quem disse tudo isso. Um pouco depois de colocar suas mãos, frias demais, em meu rosto. Um pouco depois de falar com aquela sua voz, ainda sem vida. Um pouco depois de eu abrir os olhos. Um pouco depois de me contar como tudo havia acabado.
- O que aconteceu?
- Você descansou. Por alguns anos.
- E o que eu perdi?
- Você perdeu tudo.
- Como assim... Tudo? Eu não posso ter perdido tudo... Posso? – Eu disse, já com lágrimas nos olhos.
- Não chore. Talvez tenha sido melhor. Tudo se perdeu por si só. Seu coração não aguentaria assistir ao modo como as coisas todas se esvaíram, muito menos sua alma. Você nunca conseguiria sobreviver ao choque do mundo escorrendo de suas mãos, essas mãos humanas e controversas.
- Meu coração, onde está?
- Está no vidro. Está aqui.
Ele tirou um cubo vítreo de dentro do compartimento interno de seu corpo de metal. Dentro havia um coração. O meu coração. Pulsava e pulsava, forte e vívido enquanto eu, contraditoriamente, me sentia fraca. Nada parecia fazer sentido. Eu olhei para os lados, confusa, pisquei os olhos e reparei na sala branca, vazia, exceto pelas flores. Havia muitas delas, com várias cores e aromas.  Eu sempre gostei de flores. Flores da Terra. Respirei fundo, bem fundo, fechei os olhos mais uma vez e senti a beleza dos meus sonhos.
- Eu sei que você está confusa, mas não há nada a ser feito. Abra os olhos, por favor, eu estou há tempo demais sem vê-los.
Ele colocou o meu coração sobre o criado mudo, em meio a algumas flores, e segurou a minha mão. Eu estava relembrando os campos de girassóis pelos quais havia corrido em meus sonhos. Eu estava sorrindo para os sorrisos que estavam lá, nos sonhos, quando notei que não os veria mais, nunca mais. As lágrimas se multiplicaram e, com o abrir dos olhos, escorreram suaves pelo meu rosto pálido e quieto.
- Não chore, por favor. Eu ainda estou aqui e trouxe flores, você sempre gostou de flores. Talvez seja pouco mas é tudo que temos: um ao outro.
- Como eu posso não chorar se todos os outros se foram? Eu não pude fazer nada. Estava dormindo e não lembro nem o porquê. A última coisa que me lembro é de trocar meu coração pelo... Isso é tudo culpa minha, não é? Todos morreram porque eu não pude aguentar a vida na Terra... Foi tudo culpa minha! – E então eu chorei. Chorei todas as lágrimas que se abrigaram em mim nos últimos anos, todas as tristezas que evitei enquanto não vivi. Ele ficou ali. Deixou-me chorar e me sentir viva. Há quanto tempo isso não acontecia?
- Nada é culpa sua. Nada. Eles estragaram tudo, sempre estragam tudo. Todos eles. Você trocou seu coração pelo simples abrir dos olhos de todos eles e eles jogaram fora. Esse lugar nunca foi para você. Essa tarefa nunca foi sua. É por isso que estou aqui lembra? Para cuidar de você porque não sou...
- Porque você não é como eles. Porque você é de metal. Porque você não tem coração.
- Na verdade, eu um tenho agora. Eu tenho o seu. Todo esse tempo em que você dormia eu podia sentir o pulsar do seu coração humano, já que você não precisa mais dele.  Eu podia sentir. Foi importante esse tempo todo. Eu nunca soube quando você acordaria e um coração a pulsar sempre nos dá esperanças. Acredito que isso ajudou as flores a se colorirem com mais vigor também.
- São lindas. Fazem parte das coisas bonitas que crescem aqui. Então eles se foram? Todos. Até os que eu amava?
- Você amou gente demais. Eles nunca mereceram. Você sempre soube. Agora ninguém mais poderá estragar as flores ou o céu e todas as pequenas coisas de que você gosta. O mundo continua todo ali fora e ninguém mais pode estragá-lo. Ele é seu de verdade agora. Venha ver.
- Eu posso ver?
- Claro! Você estava apenas dormindo. É preciso descansar depois de se desligar de uma vida dessa forma. Várias vidas, no seu caso. Venha.
- Mas eu não preciso do meu coração?
- Você tem uma alma. Foi sempre tudo que precisou. Eu vou guardar seu coração aqui comigo. É quente e cheio de bons sentimentos,  tudo que eu sempre precisei.
Eu me levantei da cama e senti aquele vazio de quando não se tem um coração. Eu já havia sentido isso algumas vezes, quando o coração ainda estava comigo. Todas aquelas vezes em que os dias se arrastam e as pessoas passam pela sua vida como sombras e vultos. Havia um sol brilhando na janela e iluminando toda a sala branca. O sol refletia no homem de metal, que me ajudava a ficar de pé, aquele que eu havia criado para que pudesse cuidar de mim, já que eu estava sempre cuidando dos outros.
Agora, porém, não havia outros. E tudo que podia ser feito estava feito. Não havia culpa sobre os ombros, obrigações ou cobranças. Eu sorri e levantei minha cabeça. A minha alma inundou meu corpo, um pouco dolorido, um pouco mole. Só mais um corpo humano, demasiado fraco. Encostei meu rosto no metal gelado e senti o calor do coração pulsante enquanto o homem me carregava no colo através do quarto por entre as flores. O planeta continuava igual e estava lindo. O céu estava azul e a grama verde.
- Continua lindo. O que houve com eles, eu digo, o que realmente os fez sumir?
- Implodiram. Não suportaram a dor de descobrir o mal que haviam feito a todos ao seu redor e a si mesmos. Quando você os abriu os olhos, eles não aguentaram a podridão da vida, do mesmo jeito que você.
- Uma última pergunta: eu não desisti dessa vida quando troquei meu coração pelo “abrir dos olhos”?
- Sim. Mas eu tomei a liberdade de fazer alguns ajustes no seu corpo. Achei que não se importaria já que fui criado para cuidar de você. Sendo assim, eu só estava fazendo meu trabalho.
- Você faz muito bem seu trabalho e eu fiz muito bem o meu.  Me parece que os papéis se inverteram agora. Acho que  você é o dono do coração pulsante e eu apenas restos de algo que você fez viver. Não é irônico?
- Não acredito que seja ironia. Acredito que seja apenas a vida mostrando como ela sempre quis que as coisas fossem. Coisas grandes e boas levam a coisas maiores e melhores. Não vejo como poderia ser diferente.
- Acho que eu poderia viver assim.
          Foi o que eu disse, quando o sol já se punha. Eu disse isso e notei onde estava e como estava, era real e então eu sorri. Sorri daquele jeito que as pessoas costumavam sorrir enquanto fingiam viver quando apenas sobreviviam. Daquele jeito como quando no meio do fingimento, viam vida de verdade e se surpreendiam. Bem daquele jeito, eu sorri. E não havia, absolutamente, nenhuma surpresa no ato.

domingo, 8 de julho de 2012

Mau Conselho

Vamos acomodar nossos braços
Cruzados um sobre o outro
Vamos acomodar nosso cansaço
Espalhado por todo corpo

Vamos acordar sorrindo em um dia chuvoso... e dançar!

Vamos nos despedir dos olhares tristes
E comemorar o encontro dos astros
Vamos nos abraçar no dia do eclipse
Aproveitar os minutos pois o tempo é escasso

Vamos deitar na grama em um dia ocioso... e sonhar!

Vamos guardar nossas conquistas
Em cofres de chumbo e jogar ao mar
Libertar nossos sonhos da mente profunda
Gritar e gritar, mas não os realizar

Vamos apenas transparecer... sem viver.
Porque essa é a tendência atual
E se cansamos do normal...
Apenas tente o próximo canal.

Vamos nos deitar na hipocrisia do dia-a-dia
Sem mexer braços ou pernas
Dar dicas de voo ao pássaro
Arrancando-lhe as penas.