terça-feira, 15 de maio de 2012

Uma Tela de Coragem

Completei minha xícara de café e me coloquei diante da janela. A tela branca perfurou a paisagem do pôr do sol nas montanhas enquanto as tintas se misturaram ferozes na paleta. Ainda havia muito tempo para pensar. Haveria outras telas e outras paisagens do crepúsculo. Haveria outra eu, em algum lugar. Mesmo que a vida não contribuísse para que todas essas coisas se encontrassem um dia. Mergulhei meu pincel na tinta e pensei de quantas formas o vermelho intenso poderia se dissipar em arte. Perguntei-me se eu teria coragem de fazê-lo molhar o branco.
Há muito tempo a coragem me fazia perguntas. Ela entrava nos aposentos onde eu estava e me encarava austera prevendo meu próximo ato covarde. Sempre me observando, nunca tomando conta de mim. Seus desejos de libertação me enchiam de esperança inundando minha mente de possibilidades. Quase um universo paralelo. Tão próximo e tão impossível. A coragem ditava o ritmo e movia meus pés. Mas nunca falava por mim. No fim, era eu e quando era eu, era sempre o fim. Mãos mortas acompanhando o corpo na vertical, palavras mudas, olhos vagos, baixos, covardes, pedantes, tristes...
Eu sei que a coragem não vem de fora. Apesar de estar fora pra mim. Eu sei que aquela coragem que me observa, não é minha. Ela não é nada. Eu sei. É um vulto de possibilidades. A minha própria coragem ainda está perdida dentro de mim. Às vezes ela se revela em choro de indignação, em pensamentos histéricos, desejo de auto-afirmação, desejo de... vida. Mas só às vezes. Quando não, eu encontro apenas o vulto que me encara, mostrando-me tudo que se pode ser quando se tem coragem de enfrentar o mundo.
A minha própria coragem, no entanto, ainda é tímida. É ingênua e inocente. Derrapa pra dentro de mim e me deixa oca, sem saber como agir, porque não há impulso em mim para o que é do sentimento. Então eu mesma caio dentro de mim e me deixo fraca. Perdendo a essência do meu ser. Voltando as aparências... Aparência de quem está satisfeita.
A falta de coragem faz com que as pessoas concentrem-se no habitual. Então a vida passa e lembramos que poderíamos ter sido mais ousados.  Tomei minha xícara de café, concentrando-me no que me é comum. Coloquei-me diante de mim em pensamento: a arte. As tintas se misturaram rudes na tela que não se encaixava na paisagem. Eu separei minha mente da minha mão e o pincel tomou coragem por si mesmo.
Haveria outras telas e outras paisagens do crepúsculo. Todas elas se encaixariam na janela. Notei, porém, que nenhuma delas se encaixaria em mim. Mergulhei minha mente na imagem sem sentido ali em frente. Pensando que talvez aquela arte, na verdade, fosse eu quando imersa em meus pensamentos. Perguntei-me se um dia teria coragem de ter coragem outra vez.

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